A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

''Ode ao Vento Ocidental''



1

Oh, Vento Ocidental selvagem, exalas dos seres do outono o cheiro,
    De tua presença invisível, as folhas mortas
Lançadas são tal como fantasmas fugindo de um mágico.

Multidões delas de peste acometidas !
   Amarelas, pretas, pálidas e sanguíneas! Ó tu
Que, em carruagens, te transportas ao seu sombrio canteiro de inverno
 As sementes aladas, nas quais jazem frias e miúdas
   Cada qual como um cadáver na sua cova, até que
Tua azul-celeste irmã da Primavera toque
O seu clarim sobre a terra em sonhos, e encha de
   Pressurosos suaves rebentos iguais a flores povoando o ar,
Nas planícies e colinas, com cores e odores vivos.
Espírito selvagem que por toda a parte se move;
   Destruidor e preservador: escuta, oh, escuta!


2


Tu, em cuja corrente, em meio à íngreme convulsão do firmamento,
    Onde, como folhas murchas da terra, nuvens dispersas se derramam
Galhos emaranhados do céu e oceano sacudiste,

Anjos da chuva e dos raios! Aí espraiados
     Sobre a superfície azul de teu vagalhão etéreo
Qual brilhantes cabelos levantados
De alguma terrível Bacante, que vão da fina borda do
   Horizonte às alturas do zênite,
As madeixas da tempestade que se avizinha. Nênias entoas
Ao ano que se despede, para o qual esta noite se acaba
   Será a cúpula de um vasto sepulcro
Construído com todo o teu poder concentrado
De vapores, de cuja sólida atmosfera
   Chuva negra, e fogo e granizo arrebentar-se-ão: Escuta!


3


Tu que de fato acordaste de seus sonhos de verão,
    O azul Mediterrâneo, onde jazia,
Acalentado pelo azul espiralado de suas correntes cristalinas,
Junto a uma ilha de pedra-pome na baía Baiae,
   Viste adormecidos vetustos palácios e torres
Agitando-se num dia mais intenso de ondas,
Invasão completa de musgos e flores azuis
   Tão suaves que os sentidos não conseguem pintá-las! Tu
Por cujo caminho as forças do nível do Atlântico
Abrem-se em abismos, enquanto, bem no fundo,
   As florações marinhas e as florestas lodosas, que destroem
A folhagem seca dos oceanos,

Se agitam e se anulam, conheces
Tua voz e súbito te tornas medroso: Escuta!


4


Ah, fosse eu uma folha morta que pudesses segurar,
    Ah, fosse eu uma nuvem veloz para contigo:voar
Uma onda suspirando por sob teu poder e extirpar
O impulso da tua força, só que menos livre
   Do que tu, ó incontrolável! Se pelo menos
Ainda estivesse na minha infância e pudesse ser
O companheiro de tuas andanças nos céus
  Pois então, quando fosse para superar tua velocidade celeste
Mal pareceria uma visão, - Nunca teria eu feito tanto esforço
Quanto assim contigo em prece nas horas de dolorida necessidade.
   Oh! ergue-me como se uma onda fosse, uma folha, uma nuvem!
Desmaio  sobre os espinhos da vida!  Eu sangro!
Um fardo enorme de horas acorrentou-me e me oprimiu
    Alguém também como tu – rebelde, dinâmico e orgulhoso.


5


De mim fazes a tua lira, igual assim à floresta:
    O que ocorreria se minhas folhas com as dela caíssem!
A desordem das tuas poderosas harmonias
Um profundo tom outonal retirarão de ambos,
   Suave embora triste. Sê tu, Espírito selvagem,
Meu espírito! Fazes de ti o meu ser, impetuoso espírito!
Conduze meus pensamentos mortos através do universo,
   À semelhança da folhas murchas, a fim de um novo nascimento apressar;
E, pela magia destes versos,
Difundir, como se viessem de uma lareira sempre ardente,
   Cinzas e centelhas, minhas palavras à humanidade
Através de minha boca para uma terra adormecida
Sê tu, ó vento, a trombeta de uma profecia!
   Com o retorno do inverno, não poderia a primavera logo sucedê-lo?




Percy Bysshe Shelley
(Trad. de Cunha e Silva Filho)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

"Ensaio"


No silêncio deste branco céu,
calmo e tempestuoso,
fluem lembranças coloridas,
dançantes valsas imaginárias,
com suas formas incertas,
feito livre voo das borboletas;
nítidas tal vivo quadro,
que de tão real
confunde o ensaio das nuvens!

Warllem Silva
In: Infinitude da Graça

[Arte de Jimmy Lawlor]

''SONETOS GÊMEOS''



I

Gota de luz no cálice de agosto,
Sabe a lúcida calma o desengano.
Em vão devora o tempo o mês e ao ano:
Vindima é a vida, vinho me é o sol-posto.

Cobre-se o vale de um rubor humano.
Um beijo solto voa no ar, um gosto
De uva madura, um aroma de mosto
Desce da rubra luz do céu serrano.

Vem, noite grave. E assim chegasse o outono
Meu, tão sutil e manso como agora
Mesmo subiu a sombra serra acima...

Tudo se apague e a hora esqueça a hora,
Que só do sonho eu vivo, e grato é o sono
A quem provou seu dia de vindima.


II

A quem provou seu dia de vindima
Votado ao outro lado, ao eco, ao nada,
Grata é a sombra mais longa e o fim da estrada
Começo de um descer, que é mais acima.

Grave, de uma tristeza inconsolada
Mas fiel, a minha sombra é a minha rima.
Princípio de um além que se aproxima
É o fim, talvez limiar de outra morada.

Gosto amargo e tão doce de ter sido
Poroso a tudo, alma aberta às auroras
Que hão de nascer, e ao lembrado e esquecido!

Saudade! mas saudade em que não choras
Senão cantando, o próprio mal vivido...
Que as horas voltem sempre, as mesmas horas!

Augusto Meyer


[Tela by Nita Engle]

sábado, 19 de outubro de 2013

''VIAGEM''

 
Sob o esplendor lunar,
a Noite,
imensamente silenciosa,
com ruídos
roucos,
nas toiceiras de ácidos perfumes.
Além, na longa estrada, o carro.
Avança. Vem.
¿ Quem eras tu, Viajante?
Passou.
Nunca saberás.
Uma estrela cadente
cintila
¿ Quem eras tu, no Espaço?
Fugiu, foi-se.
Nunca saberás.
Só saberás a ninharia
circundante
da tua vida.
Mas livra tua Alma
de todas as estreitezas.
Vê o infinito
do gesto bom
e
sem causas finais,
o gesto que brilha
como o Sol.
Vê a órbita dos planetas
e dos eléctrons invisíveis.
Se quiseres, se puderes, vê Deus.
Mas nunca, nunca desprendas os teus olhos
da Beleza
inatingível.

Pontes de Miranda,
de 'Inscrições da estrela interior',
in Obras literárias Prosa e poesia, 1960

''TRANQÜILIDADE''


A água misteriosa
pelas montanhas
desce,
sem cessar,
sem se ouvir...

Tranqüilidade.
Longe, na curva do oceano,
as velas
silenciosas,
sem se moverem,
sem se ouvirem,
avançam...

Tranqüilidade.
Espaçadamente,
mais uma pétala murcha
no chão recoberto de flores
aparece,
sem se ver,
sem se ouvir.

Tranqüilidade.
O perfume das árvores, dos campos,
canta, nas urnas de pólen,
o silencioso canto de amor...

Tranqüilidade.
Descendo às furnas úmidas
de mim mesmo,
paro,
e
debruço-me
sobre o lago inestanque,
imóvel,
do meu Pensamento.

Tranqüilidade.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda,
de 'Inscrições da estrela interior',
in Obras literárias Prosa e poesia, 1960.

(Maceió, 23 de abril de 1892 — Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1979) foi um jurista, filósofo, matemático e escritor brasileiro.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

  É por ti que se enchem os rios
de carpas azuis,
de águas que querem saltar
pela minha janela.
Como é belo este silêncio ilimitado
quando nas copas redondas das árvores
o teu nome me chama.
Pedi-te que apagasses a lua
e que nos campos tacteando te encontrasse.
Sei-te na aurora, por isso não temo
e agora a lanterna dos dias pode
por fim ficar em ventos de abraços.
Voam aves dentro dos teus sonhos
como memórias de pétalas acordadas.
Ficas ancorado dentro do meu tempo.
Não há saudade nem solidão
que se não derrube.

Lília Tavares
 in 'Parto com os ventos'

[Tela by Christian Schloe]

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

''DESPEDIDA''


No ar leve perfume de rosas
Em minha voz solidão profunda
e o tremor da tua voz cansada
sem horizontes e o amanhã imperecível

banindo promessas, clarões de madrugadas
como se a vida toda resumisse
em dizer adeus, partir somente
com nossas mágoas, dores e desejos

na incerteza do que vivemos e amamos
a implorar do infinito o impossível
no imperioso abandono de nós mesmos.

Elza Heloisa
de O Jardim de Judith

terça-feira, 8 de outubro de 2013

''AMOR PROFUNDO''


Não seja meu amor um mero passageiro
nesta estação de embarque de quimeras
em que a esperança espera em cativeiro
nas lembranças do encanto das esperas.

Que em nossas vidas fique o cancioneiro
com memórias do amor de quantas eras
migradas de entre as pedras ao canteiro
onde hás plantado à flor das primaveras.

Que os dias não nos passem enfadonhos
e nos deixem sonhar nossos dois sonhos
como almas gêmeas de meu travesseiro.

Provavelmente o amor venha a ser tanto
que transcenda os limites desse encanto
e seja tão eterno o quanto é verdadeiro.


Afonso Estebanez Stael

''Fio da vida''

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.

Thiago de Mello,
em "Campo de milagres", 1998.

''Água de remanso''


Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda,
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer.

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranquilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto.

 Thiago de Mello,
em "Faz escuro mas eu canto",

''Arabesco''

Já próximos escutamos o rumor
dos cavalos que correm pela treva.
Até agora, porém, nada aprendemos:
não conquistamos nem a paz dos loucos
nem a mudez das fragas solitárias.
E enquanto a noite enorme, que nos ronda,
estende as suas mãos para afagar-nos
na areia das palavras desenhamos
o arabesco invisível desta mágoa:
— somos frágeis demais e não sabemos
sequer o que nos falta para sermos
completos como um deus — ou como um pássaro.

Thiago de Mello,
em "Vento geral", 1960.

''Como um rio''


Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de lavar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva,
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de água impuras
que afloram a escondida
verdade nas funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

- Thiago de Mello,
em "Mormaço na floresta", 1981.